Entre o preto e o branco.
Frederico van Zeller
Era uma coisa muito complicada. Uma fotografia a preto e branco e o preto desmaiava de tão cinzento. A maneira como o branco se separava da prata intrigava-o. Estudou aquela imagem durante toda a manhã. Um quadrado de cinco centímetros com arestas onduladas, mas os seus olhos cansaram-se depressa. Então, devagar, sentou-se na cadeira junto à janela.
A luz fria ao atravessar as cortinas, um filtro celeste, virava cobalto, custava a penetrar na sala. O papel de parede escuro e gasto, ao fundo, chamava pelos raios, mas a cortina ciumenta demorava-os. O sofá e o grande cadeirão grená eram obstáculos difíceis de transpor. A luz, astuta, contornava-os com argúcia e lá encontrava maneira de se instalar delicadamente no velho papel.
Jaime descansava no cadeirão, junto das cortinas. Tirou de novo a fotografia do bolso da camisa e mostrou-a à luz. Tinha a certeza que conhecia aquela silhueta, aquele tom de cinzento e branco sujo. Sujo de tempo, sujo de vida. Sujo como a sua própria memória. Parecia lembrar-se daquela cara enquadrada nas arestas onduladas e vasculhou as suas mais recônditas reminiscências.
Procurou nos cantos do quarto e nos parapeitos das janelas, soprou o pó de cima das estantes, afastou os livros e as molduras. Levantou almofadas, arrastou cadeiras, abriu as gavetas perras da grande cómoda de mogno. Encontrou fiapos.
Lembrou-se do sótão. Correu para lá. As portas rangiam ao abrir, as tábuas no chão estalavam em cada passo apressado, insinuando num canto rouco que estava cada vez mais perto. Mas nada. A silhueta não se mostrava em lugar nenhum.
Depois de algum tempo a luz venceu a cortina, inundou a sala e envolveu o cadeirão, chegando, por fim, ao papel de parede que não parecia assim tão gasto quando se deixava vencer pela luz. O cobalto deu lugar ao ocre.
Por uns momentos a fotografia ganhava vida, quase cor. Encarnados suaves, castanhos pálidos, amarelos-luz, azuis frios e quentes sangue, todos os tons entre o preto e o branco. A silhueta tentava mostrar-se. Olhava-o nos olhos e chamava por ele. Um Jaime sussurrado. Então, voltou a correr ao sótão, passos largos no ar, como nos sonhos em que se corre e corre sem se sair do lugar. Quando lá chegou a porta estava pesada. Mais pesada do que o costume. Encorajou-se. Empurrou-a com toda sua força, ombreou, suou, chorou, mas a porta não cedeu. Suplicou para que se abrisse e bateu-lhe com força, mas depois, com medo de ofender, bateu devagar. Nada. Do outro lado só silêncio.
Deu um último grito e a porta gentilmente cedeu, as tábuas voltaram a ranger. Por segundos a silhueta apareceu diante de si, fitou-o. Sorriu. Espelhava-se nos seus olhos lacrimosos, velada pela cortina da janela nas águas furtadas, a silhueta, tal como a da fotografia no bolso da camisa. De tons brancos, prata-luz e escuros memória, tons de negro suaves lavados pelo tempo. Dois momentos depois, ao afastar as lágrimas, a janela ficou vazia. Como sempre. Deu um passo e voltou a sentar-se no cadeirão. Era tarde e estava escuro, a luz fora-se. No fundo da sala o papel de parede aninhava-se no cobalto, no cobalto negro.
Guardou a fotografia no bolso da camisa, esse lugar sagrado junto do seu sangue lento, esperando que no dia seguinte todos os tons de branco e prata, de preto e luz, de vida e memória não se tivessem esquecido do seu lugar. Entre o preto e o branco. Esperou sentado no grande cadeirão grená.
No dia seguinte a luz voltou a trespassar a cortina instalando-se, sem cerimónias, devagar, no fundo da sala.
Era uma coisa complicadíssima.