Adelaide
Há dias assim: o imprevisível surge num pequeno pátio lisboeta à beira do despejo. Estas sardinhas serão as últimas a assar, estes amigos e família, esta festa, arraial cuidadosamente improvisado, o ver a marcha passar, será, serão, os últimos de uma longa tradição de doze gerações que viveu neste pátio alfacinha, bem no coração da Mouraria. Que é como quem diz: a verdadeira alma, nua e crua, de Lisboa.
Adelaide a assar as sardinhas
Daqui a uns tempos tudo será estéril, limpo, novo, cheio de gente que procura uma verdade entretanto perdida, porque a sua simples presença a desalojou. É assim. Lisboa enche-se de quem quer viver uma autenticidade entretanto desinfectada, uma capital a cheirar a tinta plástica e móveis do Ikea, azulejos modernos e decoradores de óculos de massa, calças pinçadas, esticadas até à canela com uma dobra meticulosamente engomada na ponta.
O convite foi espontâneo, tanto como as gargalhadas e a alegria de ver a marcha do bairro passar à porta de casa. Foi rápido, tudo muito rápido. Em menos de um esgar, depois de passar a marcha, estava naquele pátio com a câmara na mão e um nó na garganta ao saber que serão despejados em breve. Era dia de festa. A última festa. Foi tudo muito rápido, querida Lisboa, tudo muito rápido.
A festa no pátio do Largo das Olarias
Alguns ainda pensaram que eu era estrangeiro, outros julgaram-me turista, mais um que vem ver isto do autêntico lisboeta na sua vida, no seu normal. Depois disse-lhes que era do Alentejo e depois de Lisboa e depois da Madragoa. Houve empatia imediata e uma sardinha no pão. Não sei se foi do que disse, ou da câmara que trazia, mas o momento pedia uma despedida com fotografia oficial. Um instante solene. É um retrato de uma vida no bairro de uma cidade que desaparecerá num piscar de olhos. Muito dela já se perdeu para sempre entre apertos furiosos de chave de Philips num TÄRENDÖ ou num ÖRFJÄLL qualquer.
As mulheres no pátio do Largo das Olarias
Os homens cuidadosamente vigiados por Maria, a última e mais nova da sua geração.